terça-feira, 15 de novembro de 2011

A noite mais densa

As Universidades Públicas brasileiras estão tomadas por uma unanimidade ideológica, evidentemente de esquerda. Disso todo mundo sabe, não existe segredo, especialmente nos departamentos de “ciências” humanas. Isso leva a um ciclo vicioso de lavagem cerebral doutrinária nos alunos que serão os futuros professores do ensino médio e superior do país, que vão, então, doutrinar outros alunos a pensar que a direita é o mal, a esquerda, o bem, só a revolução armada resolve, a Veja é uma revista golpista vendida aos interesses da CIA, os Estados Unidos são o grande satã e o Diogo Mainardi é feio e tem cara de melão.

A única HQ que bomba na UEL.

Até aí, nada que alguém que estudou ou que pelo menos freqüentou aulas no Brasil não saiba. O problema é que, ultimamente, os esquerdistas-intelectuais das Universidades públicas têm ficado mais despudorados com relação à doutrinação juvenil.  A prova disso é o último vestibular da Universidade Estadual de Londrina, a UEL. O exame da primeira fase teve a questão mais estapafúrdia que eu vi na minha vida. Descobri essa beleza através do blog do tio Rei, que citava como fonte a Gazeta do Povo. De fato, entrei no site da UEL, abri a prova do vestibular 2012 e lá estava a monstruosidade. Para aqueles de vocês que não leram, segue abaixo:

“O Super-Homem ganha poderes pelos efeitos dos raios solares, mas tem uma fraqueza: o minério criptonita. O Homem-Aranha adquire habilidades depois da picada de um aracnídeo. O Quarteto-Fantástico nasce dos efeitos de uma tempestade cósmica. Uma um, os elementos da natureza tornam-se importantes para o nascimento de vários super-heróis. Porém, mais do que superpoderosos, esses heróis de Histórias em Quadrinhos (HQ) também “escondem um segredo”:

I. Reforçam a ideologia de uma nação soberana, a estadunidense, protegida dos inimigos, o que a credenciaria como mantenedora da liberdade mundial.

II. Veiculam subliminarmente a crença da supremacia dos brancos, enquanto suposta raça mais forte e inteligente face aos demais grupos étnicos do planeta.

III. Defendem a ideologia da igualdade necessária entre as classes, sem a qual o mundo não poderia viver em paz e em harmonia.

IV. Reconhecem que os verdadeiros super-heróis não precisam de superpoderes, desde que sejam pessoas boas e altruístas.

Assinale a alternativa correta.

a) Somente as afirmativas I e II são corretas.

b) Somente as afirmativas I e III são corretas.

c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.

d) Somente as afirmativas I, II e IV são corretas.

e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.”

"Tou aqui pra te oprimir!"

        Vocês, é claro, já devem ter imaginado que a resposta dessa ótima questão é a letra a, senão, seguramente eu não estaria dedicando mais que meia dúzia de palavras à prova. Os leitores, certamente, já estão tão indignados quanto eu com tal absurdo. Não que qualquer alternativa esteja correta, mas eles decidiram que a “correta” seria a mais injustificável de todas.

           Na matéria da Gazeta, foi entrevistada a professora responsável pelo COPS (Coordenadoria de processos seletivos) da UEL, órgão responsável pelo vestibular, que afirmou (demonstrando estar muitíssimo informada sobre o assunto) que a questão foi elaborada “com base em conceitos da disciplina de sociologia, mas ela não soube apontar quais deles”. Além disso, ainda deixou claro que, embora exista uma ideologia por trás da prova, os professores “não podem ser irresponsáveis a ponto de fazer uma questão que só agrade a eles”. E foi exatamente isso que eles não fizeram. A questão da prova, seguindo uma “ideologia”, não agradou somente aos elaboradores. Agradou toda a companheirada da universidade que adorou a maneira astuta com que os redatores deixaram claro o que acham do “lixo cultural ianque”.

Mais adiante, o professor Ariovaldo Santos, do departamento de Ciências Sociais da UEL, que não participou da elaboração da prova, defende o colega que redigiu a pérola: “disse que dois conceitos podem ser trabalhados na questão: o da indústria cultural e dos mecanismos ideológicos de dominação. 'Seguramente faz parte da grade curricular dos alunos', garantiu.”

          Antes de me ater à questão propriamente dita, cabem alguns esclarecimentos que eu, como um bom nerd fã de quadrinhos não poderia deixar de fazer.

As Histórias em Quadrinho, supremacia branca e o imperialismo estadunidense

 Para começo de conversa, eu sou partidário da velha máxima do Oscar Wilde no prefácio d’O retrato de Dorian Gray, “Toda Arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Aqueles que procuram ver por baixo da superfície, fazem-no por conta e risco. O mesmo acontece aos que tentam penetrar o símbolo. É o espectador e não a vida que a Arte realmente reflete”. Ou seja, cada vê em uma obra, seja um livro, seja um filme ou, até mesmo, um quadrinho, o que bem quiser ver.
Todavia, apesar de a visão de que as HQs contêm um viés imperialista e racista ser possível de acordo com o nosso amigo irlandês, ela não é, nem de longe, a mais adequada. Quem fez a prova da UEL certamente não entende nada de quadrinhos. É realmente surpreendente que eles tenham acertado, de maneira simplória, a origem de cada super-herói.
A distorção bizarra da UEL poderia ser facilmente corrigida se eles se preocupassem em conhecer um pouco mais sobre o tema além da leitura que fizeram na Wikipédia em Simple English. O que eu quero dizer é que, se eles tivessem se dignado a ler um quadrinho, um mísero quadrinho que fosse, ou mesmo visto um dos (péssimos) filmes dos X-Men, certamente a abordagem teria sido diferente. A verdade é que qualquer idiota semi-alfabetizado que tenha visto, vá lá, o desenho dos X-Men quando era criança, consegue encontrar semelhanças entre o movimento dos direitos civis dos negros nos EUA e o, como posso chamar?, Movimento dos direitos civis dos mutantes nos EUA. Está tudo lá: os moderados do Martin Luther King, representados pelos mutantes da academia X e pelo professor Xavier e os radicais do Malcolm X (opa, seria referência?) pelo grupo do Magneto, só para não ir mais fundo na estória. E sabe quem são os bonzinhos? Os mutantes, o grupo oprimido! Algo que só não deixaria Gramsci orgulhoso porque eles não pretendem chacinar todos os não mutantes e tomar o poder formando a ditadura dos geneticamente modificados. Bom, talvez Gramsci fosse mais fã do estilo do Magneto.

"Nem vem UEL, sou belga!"

      Isso se ficarmos no exemplo mais alegórico. Se quisermos ser explícitos e derrubar de vez a tese mirabolante de que os quadrinhos “veiculam subliminarmente a crença da supremacia dos brancos, enquanto suposta raça mais forte e inteligente face aos demais grupos étnicos do planeta”, posso citar (de cabeça) alguns, pasmem!, super-heróis negros: Tempestade (que além de negra, é mulher, filha de uma africana e liderou os X-Men), Pantera Negra (governante de um país africano utópico, muito mais desenvolvido que os EUA), Blade, John Stewart (o segundo Lanterna Verde), Luke Cage e Nick Fury (na versão Ultimate).

         Agora, eu até consigo sentir algum esquerdopata pensando: “É, mas note que você só citou personagens secundários. Os principais são todos brancos!”. Eu tinha previsto isso e, é claro, guardei uma carta na manga (apesar de que dizer que o Blade e o Lanterna Verde são personagens secundários é uma imbecilidade). O fato é que a nossa querida Marvel Comics anunciou que o próximo Homem Aranha do universo Ultimate será nada menos que um garoto negro, filho de imigrantes latinos que tem de, além de lutar contra o crime, enfrentar o bullying e o preconceito. Isso que é veicular subliminarmente a crença da supremacia branca, hein? Simplesmente o maior e mais lucrativo herói da maior e mais lucrativa companhia de quadrinhos (me desculpem DC fags) não é branco e é filho de imigrantes latinos. Racismo puro!

       Ainda assim, até mesmo alguns daqueles que acharam ridícula a tese de que as HQ’s são racistas devem estar pensando que, de fato, as revistas têm certo viés imperialista americano (ou estadunidense, se você faz parte de algum DCE). Pois eu digo que você não poderia estar mais enganado. Nos últimos anos, pode-se notar nas principais editoras um tom ácido para com o governo dos EUA, que eles tratam, no máximo, como um paquiderme bem intencionado, mas idiota. Vide a já citada série dos X-Men, além da Guerra Civil da Marvel, em que metade dos heróis daquele universo rebela-se contra uma lei votada pelo Congresso americano e sancionada pelo Comandante-em-chefe em pessoa (incluindo, adivinhem quem? O Capitão América!). Sem contar ainda os trechos de Watchmen em que o Alan Moore critica abertamente vários aspectos da cultura e da política dos ianques. Aliás, todo mundo sabe que V de Vingança é uma revista em quadrinhos, certo?

       Eu poderia ir adiante citando mais exemplos dos próprios quadrinhos que desautorizam a interpretação dos elaboradores da prova. Porém, imagina-se que, se hoje em dia os quadrinhos não são como a prova da UEL os pinta, eles assim o foram. Quando esse tipo de narrativa iniciou-se na década de 30, na chamada Era de Ouro dos Quadrinhos, não havia super-herói negro e o american way of life era o valor supremo das revistas. Agora, pensemos: anos 30! O que mais você poderia esperar, na década de 30, de um produto que era destinado exclusivamente para crianças? Discussões profundas sobre a condição humana? Alguma vez você já se perguntou o porquê de ninguém mais ler revistinhas dos anos 30? Se vocês querem implicar com imperialismo, peguem no pé do Tintin ou, se o problema for racismo, vão atrás do Monteiro Lobato.

       E, claro, alguém vai citar a participação, nos anos 40, dos heróis dos quadrinhos no esforço de guerra. Eu não tenho nada contra isso. Ou alguém acha que foi um tratamento injusto dado aos nazistas o fato de o Capitão América dar uns sopapos no Hitler? Eu, particularmente, pagaria (e caro), por uma série em que o Capitão distribuísse pancadas em Hitler, Mussolini, Stalin, Fidel, Mao, Che, Pol Pot e Ho Chi Min.

Exemplo da opressão de outros povos pela cultura estadunidense.

Indústria Cultural e Ideologia

       Enquanto estava no processo de elaboração desse texto, saíram as questões comentadas da UEL. Eu ri.  Ao justificar a absurda resposta, a UEL vem com o discursinho esperado: o tema abordado foi indústria cultural, ideologia, cultura de massa etc. Sempre com o embasamento teórico daquele velho pessoal conhecido de todo mundo que já cursou uma faculdade de humanas e teve um professor, invariavelmente esquerdista, de sociologia. Horkheimer, Adorno e a patotinha da Escola de Frankfurt (Santo Clichê, Batman!). Mas eles foram mais longe! Quando divulguei esse exemplo da educação brasileira no Twitter, a minha amiga Bárbara Magalhães (@babspider) disse, “Só faltava "Para ler o Pato Donald" ser leitura obrigatória”. E adivinhem qual obra os doutores da UEL usaram na justificativa da questão? “Para ler o Pato Donald”! Na prova toda não houve uma questão sobre Weber ou sobre Émile Durkheim. Duas sobre Adorno e Horkheimer. E, claro, “Para ler o Pato Donald”! Pelo menos cobraram alguma coisa sobre Aristóteles e Francis Bacon.

       Para quem não conhece, “Para ler o Pato Donald” é a versão esquerdista da “Sedução dos inocentes”. Nesta, o autor acusa as revistinhas de subverter a juventude americana, levando-a ao sexo (homossexual, é claro), às drogas e ao rock’n’roll; naquela, o autor acusa os quadrinhos (da Disney, não da Marvel ou da DC, notem) de promoverem o chamado imperialismo cultural, repassando valores capitalistas, liberais, blá, blá, blá. Ou seja, os quadrinhos têm a mágica de serem “de esquerda” para os Macarthistas e “porcos neoliberais imperialistas de direita” para a esquerda frankfurtiana. Para mim, os autores de ambos os livros deveriam parar de procurar pêlo em ovo, mas tudo bem.

         A justificativa, então, da afirmação de número I é, portanto, o fato de o pessoal da escola da Frankfurt achar que “não existe pensamento inocente no espaço social”. Eu sou bonzinho e até consigo aceitar isso. Imagino mesmo que o Adorno concordaria com a afirmativa I. O problema é que o enunciado da questão não deixa claro que se está cobrando a interpretação de algum pensador sobre o tema. E se isso não fica claro, presume-se que o que se quer é a interpretação do aluno ou o que é verdade. Em nenhum momento do texto eles dizem “segundo o pensamento da Escola da Frankfurt” ou “segundo os seus conhecimentos sobre a indústria cultural e o pensamento do filósofo alemão Theodor Adorno analise as afirmativas abaixo”. Nada. Se o enunciado (mal escrito) não deixa claro o que quer, o aluno pode responder o que bem entende.

          A afirmativa II, nem com um enunciado bem escrito se salvava. Primeiro porque o próprio examinador cita o Homem-aranha negro, mostrando que ele mesmo sabe que a questão é furada. Ele, é claro, tenta se justificar dizendo que foi um avanço (como se esse fosse o primeiro personagem negro da história dos quadrinhos), mas a sociedade americana ainda é muito racista e mostrando que se aqueles super-heróis que foram citados no enunciado eram brancos, portanto, todo o universo dos quadrinhos é racista. Entenderam a lógica? Eu também não. Quer dizer que se eu fizesse um texto em que eu colocasse o Deadpool, o Wolverine e o Northstar na questão eu poderia afirmar que as HQs veiculam subliminarmente a crença na supremacia dos canadenses? É isso mesmo, produção?

        A minha justificativa preferida é a da afirmativa III, em que o autor, em tom quase lamentoso, justifica que ela está errada porque “não há entre os super-heróis citados, nenhum que levante a bandeira da luta de classes ou de superação da sociedade capitalista, entre outros princípios que pudessem referendar a defesa da emancipação humana”.  Ou seja, reforçar subliminarmente a ideologia liberal (no linguajar deles) não pode. Reforçar subliminarmente a ideologia comuna, não só pode, como deve, porque, afinal de contas, são princípios que referendam “a defesa da emancipação humana”. Defendem a emancipação humana, lógico, na opinão de quem fez a questão, é claro. Nunca vi um Gulag soviético emancipar ninguém. Mas, como quem faz a prova são eles, eles podem colocar as opiniões deles e que se lixe quem pensar o contrário.

"Vim emancipar vocês, companheiros!"

       Já a última afirmativa está errada, segundo a UEL, porque, afinal de contas, o que torna os Super especiais é o fato de eles terem habilidades sobre humanas e não o fato de eles serem pessoas boas e altruístas. Aham, tá bom então, vai dizer isso pro Batman. Mais uma vez eles demonstram ignorância abissal com relação às HQs: o enredo mais manjado de todos é aquele em que o herói perde seu poder e só se recupera porque ele é uma pessoa boa, altruísta, inteligente, talentosa, capaz, enfim, um herói antes de super. Aliás, como é mesmo escolhido o portador do anel no Green Lantern Corps? Ah, é! Os Lanternas são escolhidos pela sua força de vontade, coragem e bondade. Ou seja, justificaram errado de novo.

     O pessoal da UEL, como eu disse antes, deveria ler mais quadrinhos antes de fazer uma questão sobre quadrinhos. Antes de tudo, eles deveriam, é claro, guardar para si o que eles acham e cobrar os conteúdos objetivamente. Mais ainda: eles deveriam tentar deixar claro nos enunciados o que eles estão tentando cobrar do aluno. Talvez eles devessem ler mais quadrinhos não só para fazer questões corretas sobre HQs, mas para aprender uma lição importante: com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. 


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